quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Que folia é essa?

Quando ouço uma batida de tambor, vozes melancólicas entoadas durante os dias natalinos, já sei o que está acontecendo: é a Folia percorrendo as ruas da cidade. Viva Santos Reis. Viva!!!


O
s rojões pipocam no céu anunciando que logo mais uma festa vai acontecer. Nas redondezas as pessoas deixam suas residências em trajes festivos. Taramelas vedam os portões para os cachorros não seguirem os donos. Alguns minutos antes, um chuvisco ameaça a continuidade do evento. Chuvisco pode tornar-se chuva forte. E de tomar chuvarada na cabeça o pessoal que a acompanha Zezinho já está cansado. A isso se somam as intermináveis horas percorrendo as ruas da cidade, tanto no perímetro urbano quanto na zona rural, amassando barro, escorregando aqui, ali, desviando de uma possa de lama e quase sempre tendo que correr de uma garoa marota. Mas os festejos estam chegando ao fim. De longe se escuta ora um apito, ora uma batida de caixa. O que é isso? Aos poucos fica audível também o som de vozes, predominantemente masculinas, melancólicas.
Nós viemos com a notícia,
Nós viemos com a notícia
Que aqui tinha morador,
Que aqui tinha morador oiaaaaa
Os últimos versos são entoados com uma agudeza que chega a dar um aperto no coração. Em alguns momentos a letra da cantiga se torna inaudível, devido a profusão dos instrumentos musicais e vozes. Sempre presente, o ribombar da caixa faz o estômago estremecer. Que folia é essa que domina as redondezas, que motiva as pessoas a saírem de suas casas em uma manhã de quinta-feira? Seguindo a multidão chega-se à Igreja de Santos Reis. Está explicado. Seis de janeiro, para os católicos uma das datas mais importantes do calendário de comemorações: o dia em que os Reis Magos do Oriente visitaram o Menino Jesus, ofertando-lhe valiosos presentes. Ouro, incenso e mirra, esses foram as oferendas dedicadas a Cristo Menino, por Gaspar, Melchior e Baltasar. Para relembrar e homenagear a data a Companhia de Santos Reis, liderada pelo embaixador José Pereira Otoni, popularmente conhecido como Zezinho, sai às ruas de Alta Floresta D’Oeste, interior do Estado de Rondônia, entre os dias 22 de dezembro e 6 de janeiro, visitando as casas das famílias que desejam receber a benção dos três reis magos em suas habitações.
A toada ganha força. A procissão vai se aproximando. A vinte metros da Igreja Santos Reis, situada no bairro Cidade Alta, a Folia de Reis vai chegando ao seu destino final. Após quinze dias de uma intensa maratona cancioneira, os integrantes da Companhia de Santos Reis, enfim poderão concluir o rito que realizam a quase trinta anos no município de Alta Floresta D’Oeste, distante aproximadamente 500 quilômetros da capital Porto Velho. Muitas pessoas esperam do lado de fora do templo, outras tantas já ocupam os bancos internos, onde se abanam para espantar o calor de quase 30°. À frente do cortejo religioso está a Bandeira que representa os Três Reis Magos. Ela é empunhada por Luciana, filha de Zezinho. A bandeira é o principal símbolo desse universo seresteiro, e por isso lhe é dedicada tanta atenção. “Na bandeira nós temos os Três Reis do Oriente, tem São José, a Virgem Maria e o Menino Jesus. Ela representa o nascimento que está todinho na bandeira, e nós chega com essa bandeira nas casas dos moradores e eles recebem essa bandeira de Três Reis muito bem”, enfatiza Zezinho.
Recebeu nossa bandeira
Recebeu nossa bandeira
Com prazer e alegria,
Com prazer e alegria, oiaaaaa
                Na entrada da Igreja, três portais feitos com folhas de coqueiro, adornados com correntes de papel crepom, impedem parcialmente a passagem dos fiéis para a igreja pelo portão central. Faz parte da cerimônia, as pessoas mais velhas respeitam, as crianças também, mas essa últimas exprimem nos olhos uma tremenda vontade de puxar aquelas frágeis barreiras feitas de papel. A procissão pára em frente ao primeiro portal. Foguetes são lançados para anunciar a chegada da Folia em seu destino final. A estrela de isopor, encapada com papel laminado amarelo ouro, representa a Estrela Guia, àquela que orientou a travessia dos Três Reis em busca do local em que havia nascido o Menino Salvador.

                Meu interesse pela Folia de Reis realizada em minha cidade natal já é antigo. Após cursar Jornalismo na Universidade Federal de Rondônia, a vontade de conhecer um pouco mais dessa tradição só aumentou. Os batuques, os apitos e o coro afinado sempre chamaram minha atenção, assim como as roupas que os foliões utilizavam. Achava muito mais colorido o período natalino em minha cidade do que em outras por onde passei. Manifestei esse desejo de conhecer a fundo essa cultura religiosa e popular para a minha mãe, também admiradora das toadas natalinas. Ela me informou que um conhecido fazia parte da Companhia de Santos Reis.  Já passava das seis da tarde, do dia 26 de dezembro de 2010, um domingo, quando mamãe me convidou para ir até a casa de Seu Josias.
                Não era muito longe a residência, ao passo que em menos de dez minutos havíamos chegado ao local. Batemos palmas e um cachorro estridente apareceu para dar as boas vindas. Chamamos por Josias e eis que um senhor negro, alto, com cabelos e barba branca apareceu para nos atender. Com um vozeirão, que poderia muito bem estar apresentando um programa radiofônico, ele nos cumprimentou e convidou-nos a entrar em seu quintal. Dirigimo-nos até os fundos da casa, onde havia uma área de serviço. Acomodamo-nos e pedimos a Josias que falasse um pouco sobre a Folia de Reis em Alta Floresta D’Oeste. Ele explicou que nessa edição não estava participando da Folia por estar trabalhando, mas nem por isso deixou de nos ajudar. Pegou o telefone celular e pediu para que eu procurasse o número de Zezinho. Achei, apertei o botão para iniciar a chamada e passei o telefone para Josias.
Através da ligação ficamos sabendo que a Companhia de Santos Reis estava visitando as casas da zona rural e que estariam próximo à minha casa na quarta-feira, no dia 29 de dezembro. Seu Josias informou Zezinho sobre mim e sobre a entrevista que gostaria de realizar com o grupo. A resposta foi positiva, bastando apenas procurá-los pela redondeza no dia informado. Isso não seria difícil, pois o som da caixa era inconfundível. Quando ouvisse, com certeza estaria à procura dos foliões.
O relógio marca oito e meia da manhã.  Minha mãe bate na porta informando algo que eu já sei. Eles estão por ali, em alguma rua próxima da minha casa. Levanto, escovo os dentes, tomo um café apressadamente, troco de roupa e saio à procura dos meus entrevistados.
Não demora muito para eu saber que eles estão na rua de baixo. Estão bem perto da minha casa. Vou até eles. Intercepto-os saindo de uma residência e já se preparando para entrar em outra. Apresento-me, digo que sou filho da professora Marilene e a maioria parece conhecê-la. Faço a proposta de entrevista, ao que eles concordam. Fica decidido que o nosso bate-papo irá acontecer na casa da minha mãe, onde eles também irão tocar, cantar e representar.
Eles me convidam para a próxima apresentação. Aceito e vou com eles até a casa de Seu Otávio. Abrindo o cortejo os dois Bastiões, também conhecidos como palhaços, vão escudando a Companhia de Santos Reis, caracterizados com vestimentas coloridas, onde predominam as cores primárias: azul, vermelho e amarelo. Uma máscara com longos bigodes e uma espada feita de madeira completam a fantasia. São eles que, primeiramente conversam com o dono da casa, pedindo se ele aceita a visita da bandeira de Santos Reis. “Somos nós que defendemos os caminhos que eles vão passar. Nós somos os soldados e vamos até as casas e pedimos se as pessoas aceitam ou não aceitam a visita de Santos Reis. Se as pessoas aceitam, a gente entra e canta, se o pessoal não aceita a cantoria que representa a comunidade de Santos Reis, a gente segue adiante, mas também convida de coração para participar da Festa de Santos Reis”, explica Sandoval Pereira Otoni, um dos bastiões.
_Quero ver se vocês sabem cantar, por que eu já fui folião – responde o senhor sem camisa, com uma calça social gasta, nas mãos a bandeira de Santos Reis, vermelha, cheia de laços e flores, além de correntes com pequenos sinos. Também há fotos de outros integrantes da Companhia de Santos Reis e gravuras da Sagrada Família.
Com a resposta afirmativa do ancião, os foliões vão entrando e ocupando lugares para começarem as toadas. Ao dedilhar do violão de Zezinho, uma harmoniosa melodia começa a dominar o ambiente. No centro da roda que se formou para a cantoria, a esposa de Seu Otávio segura a bandeira com delicadeza. Depois de entoado o canto principal, o canto de agradecimento pela doação para a festa a ser realizada no dia 6 de janeiro, uma café é oferecido aos foliões. Enquanto os membros degustam a bebida fumegante, seu Otávio indaga:
_Os cantos daqui é tudo diferente de Minas? Porque?
_Por que aqui é Rondônia – responde enfático Zezinho.
Mais tarde Zezinho me contaria que as toadas cantadas pela Companhia de Santos Reis tem inspiração nas toadas mineiras, paulistas, baianas e cariocas.
_Quando os foliões vai sair né, eles falam:” Santos Reis tá dispidindo, com reinado pelas fitas, sodade de quem vai e sodade de quem fica – relembra Seu Otávio que se empolga e fala outros versos que entoava na época em que era folião em Minas Gerais.
_ Vinte e cinco de dezembro não se deita em colchão, se orar a dona da casa põe a mão, vinte e cinco de dezembro não se deita em colchão, Jesus Cristo nasceu nas painhas do chão – relembra o ancião meio em dúvida quanto ao último verso da toada.
_Eu cantei muita folia, mas nós andava só de noite, nós andava nas linhas.
_O senhor não andava de dia não patrão? – pergunta um dos bastiões – Com medo da puliça?
_É por que diz que Santos Reis é criminoso né? Então não pode andar de dia. Pros antigos era deste tipo né?
_Quem é que recebe a oferta? É ela que recebe? – pergunta o senhor, ao que uma garota negra , de olhos expressivos chega com um caderno.
_Como é nome do senhor?
_Otávio Paulo de Oliveira – após informar o nome o ancião dá algumas moedas para a menina e direciona a conversa para Zezinho.
_Eu já cantei muita Folia. Eu cantava Folia mais um velho. Aquele velho era bom, tinha vez que ele roucava e não aguentava cantar, então eu já tava treinado pra puxar na frente. Só que nós fazia assim, nós fazia a fila assim, e o requinteiro [responsável pelas notas mais agudas, e na minha opinião, melancólicas] fazia a requinta do lado de cá e o outro requinteiro fazia do outro lado. Cada qual tinha o seu lado. Quando eu comecei a entrar na Folia, comecei a cantar, ajudar eles, e tinha vez quando faltava requinta de um lado eu fazia do outro lado. Mas as coisas vai mudando, em cada Estado tem um tipo.
Mais um pouco de prosa entre os donos da casa e os foliões e já é hora de partir. O tempo ameaça chuva e a Companhia ainda tem muitas casas para visitar. Uma, duas e enfim, a minha casa. Corro para lá e aviso a minha mãe que o pessoal está chegando. As batidas da caixa, juntamente com o apito se aproximam. Na área de casa, mamãe e eu avistamos os membros da Folia de Reis vestidos com camisetas amarelas “A cor das roupas é pra identificar os foliões. Por que nós já chegamos em lugares que só entrava nas casas aqueles que estavam uniformizados,  por que o dono da casa só aceitava os foliões, as pessoas com fardamento assim [indica a própria camisa amarela]. E é uma maneira mais fácil de identificar o pessoal da Folia de Santos Reis”, ressaltou Zezinho em conversa  posterior.
Alguns trazem na cabeça um chapéu ou boné com uma estrela, que mais tarde saberia que, simbolizavam os Três Reis. “Eu e esses que tão com os bonés na cabeça significa os reis, por que os reis magos têm as coroinhas na cabeça”, explica Zezinho. Os foliões têm dificuldade de chegar até o portão da minha casa devido à grande quantidade de lama no caminho. No portão um dos Bastiões indaga:
_Quer que a gente aqui fora ou aí dentro?
_Aqui dentro, é claro! – responde com satisfação mamãe.
_Eitaaa! Pega a nossa bandeira madrinha? – diz o Bastião barbado indicando a Bandeira que está nas mãos de Maria de Lourdes Pereira da Silva, esposa de Zezinho e também tesoureira da Companhia. Maria estende com cuidado a Bandeira enfeitada para minha mãe que a segura do lado avesso.
_A madrinha já preparou o realzão pra fazer sua oferta madrinha? – pergunta o Bastião, fazendo referência às ofertas que são dadas aos foliões e que serão utilizadas para a compra de alimentos para a Festa de Santos Reis, no dia 6 de janeiro.
_Jáa!
_Vai sujar a área da senhora madrinha.
_Que nada! Pode entrar.
_Vira essa bandeira pra cá, assim ó – indica o outro Bastião, que tenta colocar de maneira correta a Bandeira nas mãos de minha mãe.
_Coloca a bandeira reta madrinha, reta madrinha! -  exclama o Bastião consertando o modo de segurar a bandeira.
_ É ele que não sabe explicar direito madrinha - a dona da casa dá um leve sorriso.
_Entra, vamos entrar pessoal, cabe todo mundo. Vamos chegando pra cá, pode chegar pra cá – diz mamãe, indicando a extensa área a ser ocupada, livre do intenso calor que começava a fazer lá fora.  
Os foliões se aglomeram em volta da Bandeira empunhada por mamãe e ao som do apito e do dedilhar da viola de Mestre Zezinho, uma profusão de instrumentos musicais começam a ecoar os seus sons, ora de modo caótico, ora de maneira harmoniosa. Pandeiro, triângulo,  viola, violão, e o som da caixa ao fundo dão o tom da seresta divina, por vezes inaudível, mas que comove quem escuta.
Recebeu nossa bandeira
Recebeu nossa bandeira
Com prazer e alegria,
Com prazer e alegria oiáaaaaaa

Santos Reis te abençoa
Santos Reis te abençoa
A senhora e a família
A senhora e a família oiáaaaaa
Após a canção de chegada, peço a todos que se acomodem nas cadeiras. Os foliões se ajeitam em seus lugares, em um misto de descanso e expectativa quanto ao que vou perguntar. Apresento-me mais uma vez, falo do meu interesse em registrar a importante manifestação cultural que a Folia de Reis representa para Alta Floresta e para Rondônia. As crianças olham curiosas para a câmera que está em uma das minhas mãos. Minha mãe traz café e água para os cancioneiros.
Começo perguntando quando a Companhia de Santos Reis (nome do grupo) começou a Folia no município. Zezinho, homem negro, de semblante simpático, porte ereto e pequeno bigode responde que o primeiro ano em que saiu para cantar de casa em casa foi em 1983, portanto, antes mesmo da emancipação político-administrativa da cidade, ocorrida no ano de 1986.
Mas a Folia já corria nas veias de Zezinho desde pequeno, quando morava em Minas Gerais, um dos estados brasileiros com grande número de grupos de Folias de Reis. “Eu comecei a andar com a Folia de Reis com sete anos de idade, hoje eu estou com 48 anos”, relembra. De lá para cá, migrou para o Paraná, onde viveu uma parte de sua infância e juventude, vindo a se instalar posteriormente em Rondônia, acompanhando a febre desenvolvimentista iniciada na década de 1970, que visava povoar a região Norte do Brasil.
A Folia de Reis é uma das festas religiosas populares mais antigas do Brasil. Ela chegou ao país com os portugueses, ainda no período de colonização. Essa manifestação cultural era realizada em toda a Península Ibérica, da qual Portugal e Espanha se destacavam. Os princípios básicos - a entoação de cantos de caráter religioso, danças e doação de ofertas por parte das famílias visitadas – foram mantidas ao desembarcar em solo tupiniquim. Ela teria surgido mais precisamente em 1534, e foi propagada pelos jesuítas como forma de catequizar indígenas e negros escravos.  Os contatos com os diferentes povos conferiram ao festejo variações, mas todas mantiveram o espírito de adoração à Sagrada Família e aos Três Reis Magos, que visitaram o Menino Jesus, ofertando-lhe valiosos presentes. Com o intenso fluxo migratório ocorrido ao longo dos séculos que sucederam o “descobrimento” do Brasil, a Folia de Reis foi sendo espalhada pelos estados, onde ganhava características próprias, sem perder os pilares que sustentam essa tradição.
                Durante os quinze  dias em que percorrem a cidade cantando as boas novas natalinas e a visita dos três reis magos, os foliões visitam em média 500 casas, tanto na zona rural quanto na urbana. “Teve ano de a gente andar mais de 650 casas nos 14, 15 dias de Folia. Daí teve ano que caiu pra 400. Em outros anos visitamos 500 casas. Então não tem quantia, depende muito. Não tem quantia não, vai depender do tempo. Quando chove muito, aí, diminui as visitas”, informou Zezinho.
_E vocês também vão pra zona rural? – pergunto.
_Nós estamos vindo da zona rural – responde Zezinho.
_Quando o Seu Josias ligou vocês estavam na 42 [uma das linhas rurais de Alta Floresta D’Oeste] né? – peço a confirmação.
_A gente tava lá. Daí nós viemos aqui pra cidade.
_Mas então vocês já tem um roteiro programado?
_Mais ou menos nós já temos o roteiro por onde a gente sempre passa, mas todo ano aumenta mais.
_E vocês avisam antes, ou vão de casa em casa? Como é que é?
_Uns a gente convida, os outros já é de tradição acompanhar a gente. Os outros, quando a gente está passando eles vem pedir a visita na casa. Nós não temos só um paradeiro.
_E aqui em Rondônia vocês têm contato com outras Folias de Reis?
_Temos sim.
_Então tem outros municípios que fazem também?
_Sim, mas aqui em Alta Floresta nós temos a igreja de Santos Reis. Em Santa Luzia tem uma Folia de Reis, em Rolim [de Moura] também tem.
_E nessas cidades não tem a comunidade de Santos Reis?
_Não. Só aqui em Alta Floresta que tem uma comunidade de Santos Reis. E nós através de vinte e tantos anos de jornada é que conseguimos construir a igreja.
A companhia também não tem um número fixo de participantes ativos, variando conforme a disponibilidade de cada um. “Hoje o número certo mesmo é doze, mas como nós temos a família que é grande nos estamos andando na faixa de uns quinze a dezoito companheiros”, conta Zezinho.
                Uma das características mais marcantes da Folia de Reis em Alta Floresta D’Oeste é a quantidade considerável de crianças que acompanham os festejos. Além dos filhos de Zezinho e Maria, outros meninos seguem os foliões em sua jornada cancioneira. Como forma de manter a tradição viva, o Mestre do grupo tratou de ensinar seus rebentos logo cedo a manusear os instrumentos musicais utilizados durante as visitas feitas nas casas. O pequeno Cristiano domina o cavaquinho como poucos de sua idade conseguiriam fazer. Já Luciana, um pouco mais velha que Cristiano, reveza entre o triângulo e a caixa, que emite um som parecido com o de um tambor.
                A Folia de Reis de Alta Floresta descende das primeiras folias realizadas no sudeste do Brasil. “Nós começamos em Minas Gerais. Há mais de quarenta anos atrás. A gente herdou dos avôs, dos bisavôs, essa foi a fundação. E isso foi passando de um para outro, de outro pra outro [dá um sorriso movimento colocando um braço a frente do outro para indicar uma sucessão de linhagem sanguínea], e assim nós estamos levando essa tradição, e mais companheiros, não só o pessoal dos Três Reis, mais outros companheiros que vêm dar uma força e  ainda tem as crianças” – explica metodicamente Sebastião Pereira Otoni, responsável pelo pandeiro.  
_E como é essa coisa de transmissão de pai pra filhos, qual é a geração que está cantando com vocês a Folia de Reis?- pergunto aos membros da Companhia.
 – Já é a segunda geração aqui em Rondônia. Agora a gente está ensinando as crianças menores – informa João de Araújo Lopes que se reveza entre pandeiro, caixa e também atua como requinteiro, ou seja, ele é um dos que dá as últimas notas de cada verso de forma mais aguda.  
_E eles gostam?
_Oh, demais. Tem a comadre, que chega nas casas e reza o terço com as crianças – João aponta para Maria, a tesoureira, que está sentada na mureta da área.
_Como vocês ensinam os rituais da Folia de Reis para as crianças? – pergunto para Maria.
 – Bom, lá em casa, a gente ensaia as crianças. Agora as crianças das pessoas que a gente passa nas casas aprendem com nós que passamos nas casas delas – explica a mulher.
_Nos finais de semana, esse aqui, aquele ali, aquele outro ali [diz apontando para uma série de crianças e adolescentes que estão no local da entrevista] vão aprendendo a tocar e sobre a importância disso – informa Sandoval, o Bastião barbudo.
_E os velhos vão [no sentido de morrer] e vamos deixando para a criançada. A gente tem que ensinar as crianças pra não acabar – conclui João, o Requinteiro.
                Ao terminar a entrevista, minha mãe faz a oferta para ajudar na festa. Ela informa seu nome à Maria, que anota tudo em um caderno. Para agradecer a oferta os foliões entoam mais uma canção.
Santos reis vinham passando
Santos reis vinham passando
E na sua casa chegou
E na sua casa chegou

Pra trazer vida e saúde
Pra trazer vida e saúde

Pro senhor e a família
 Pro senhor e a família, oiáaaaa.

Agora dona eu vou pedir uma o oferta pra bandeira,
Agora dona eu vou pedir uma oferta pra bandeira, oiáa.
Deus lhe pague a oferta dada de bom coração,
Deus lhe pague a oferta dada de bom coração, oiáa.
               
                Viva os três reis – puxa o Bastião barbado.
Vivaaaa
Viva o Menino Jesus,
Vivaaa
Viva a Virgem Maria,
Vivaaaa
Viva a dona da casa e toda a sua família,
Vivaaaa !  – exclamam todos os presentes.

Após as saudações os integrantes do grupo passam por mim e me cumprimentam com entusiasmo. Reforçam o convite para eu participar da festa no dia 6 de janeiro. Acenos de mãos de ambas as partes. Eles saem pela rua lamacenta com destino à próxima casa, onde um almoço apetitoso os espera.
                Finalmente o grande dia chega. É dia 6 de janeiro, Dia de Santos Reis. Depois de visitar mais de 500 casas a Companhia de Santos Reis encerrará mais uma maratona cancioneira religiosa. As vozes, depois de quinze dias de cantoria, ainda estão potentes, afinadas. O cansaço provocado pelo enfrentamento de sol e chuva, não abate os foliões. O descanso ficará para depois, pois agora devem realizar a melhor apresentação. A toada mais afinada deve brotar de suas gargantas e invadir o templo dedicado aos santos a quem aclamam. A igreja está lotada, colorida de gente.
                Mais foguetes são lançados a cada portal atravessado. As crianças disputam os pedaços de papel crepom. Enfim, os foliões chegam ao interior da igreja. A Estrela Guia, afixada em um fio, segue até a manjedoura, indicando o caminho a ser percorrido. A história bíblica é recontada.  À frente da procissão os Bastiões se ajoelham e seguem pelo corredor até o presépio instalado no lado esquerdo do altar. Os outros integrantes da Companhia de Santos Reis caminham lentamente entoando mais uma de suas canções, enquanto os últimos lugares disponíveis no interior da igreja são ocupados. Quando chegam ao presépio fazem reverências e continuam a toada até o seu final, marcado pelos agudos de três ou quatro foliões requinteiros.
                A missa, celebrada pelo padre estrageiro Ireneu Komlan, de Togo, África, é marcada por um discurso de amor ao próximo, de expurgação da escravidão do homem ao bens materiais e de reflexão. Posteriormente o sacerdote me explicaria a simbologia de cada presente ofertado a Jesus. “Cada um desses presentes têm um simbolismo. O ouro significa que eles reconhecem o reinado de Jesus. O incenso pra dizer que Jesus é Deus. E a mirra pra mostrar que Jesus também foi homem através do sofrimento de seu na cruz. Então esses três presentes têm bastante simbolismo para nós hoje. E foi dito que esses três reis magos têm nome de Gaspar, Melchior e Baltazar. A Bíblia não fala isso, mas segundo a tradição são esses três reis que saíram ao encontro do menino Jesus”, - explica Ireneu, com um leve sotaque francês.
                Em um determinado momento da celebração Zezinho é convocado ao altar para falar um pouco sobre as visitações. Diante de todos os presentes ele se emociona ao contar da sua quase desistência de cantar a Folia desse ano por causa de problemas de saúde e também por ainda estar abalado com a morte de uma tia que participava ativamente da Folia. Revela que por insistência do filho mais velho e de alguns amigos ele resolveu sair às ruas e renovar a tradição de levar a mensagem do nascimento de Jesus e da visitação dos Reis Magos para os lares altaflorestenses. Agradece o apoio de todos aqueles que lhe incentivaram e que doaram ofertas para a realização da festa que acontecerá após a celebração religiosa. Palmas ecoam pelo interior da igreja. Elas expressam o carinho que a comunidade tem para com o Mestre. Como a Estrela, ele guiou por mais um ano os foliões pelos obstáculos, superando as variações climáticas e o cansaço. Viva o embaixador. Vivaaa!
                Amém! Dizem todos, após o padre proferir a benção final. As pessoas se encaminham para o barracão onde está sendo serviço o almoço. Carne, pão, mandioca é o que consigo visualizar nos pratinhos descartáveis que passam ao meu redor. Enfim a comunhão. Todos parecem requisitar a atenção de Zezinho. É difícil conseguir um minuto a sós, então espero o momento em que o número de pessoas em sua volta diminui e vou ao seu encontro. Pergunto se tudo saiu como o planejado. Ele responde que sim, com um sorriso nos lábios. Aproveita para me mostrar um cartaz com fotos enviado por um dos moradores que recebeu a visita da Companhia de Santos Reis em sua casa. Ele se emociona mais uma vez. Indago se ele já está pensando na Folia do ano seguinte ao que de imediato ele responde:
                _É claro. A gente não pode deixar a tradição morrer.
                Ele volta para a companhia dos amigos,  que estão perto da churrasqueira. Os outros foliões passam por mim e me cumprimentam. Parecem meus conhecidos de vários anos. Parecem irmãos. E Talvez seja essa a grande mensagem que a Folia de Reis tenta passar. União.  
Santos Reis te abençoe pra que nunca falte o pão
Santos Reis te abençoe pra que nunca falte o pão, oiáaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa. 




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